Gostei da
repercussão da primeira parte desta análise publicada na semana passada. Entre
os prós e contra manifestos, o importante é o debate que aprimora a ideia
inicial e o atender ao chamado à reflexão sobre o tema.
Analisemos
agora o “Mais Médicos”. O programa do governo federal contrata por salário de
R$ 10.000,00 mensais, mais alojamento e alimentação, médicos para trabalhar nos
serviços de atenção básica dos municípios brasileiros com maior carência desses
profissionais. É verdade que médico é profissional escasso em algumas regiões.
E é sempre um profissional caro. (Mas vamos deixar bem claro: não são os
médicos que ganham bem; é a maioria das outras profissões que ganha muito mal.).
Para tanto, a presidenta através da Medida Provisória nº 621/2013 estimulou
médicos virem do exterior para o Brasil, inclusive concedendo a eles o registro
profissional provisório que os habilita a exercerem a profissão no país ao
arrepio da legislação vigente. Responsabiliza-se o governo ainda por um rápido
cursinho de preparação para esses profissionais e os presenteia com tablets com acesso a internet para que
eles possam tirar dúvidas rápidas e se familiarizem com nossa terminologia e
medicamentos mais comuns. Fácil resolver o problema da assistência médica no
Brasil, não é? É... parece fácil. Mas não o é. O problema é mais complexo e
profundo do que esse simplismo irresponsável e eleitoreiro que a presidenta e
sua equipe concebem. E o pior é que eles sabem disso. Portanto, sobra
irresponsabilidade e má fé do governo federal nessa questão específica.
A presidenta
não concebeu a criação do programa quando constatou a precária realidade da
assistência à saúde pública no Brasil ou após constatar a falta de médicos para
a execução das politicas públicas de saúde do governo dela. Mas foi após
perceber nas manifestações dos médicos nas ruas que ela não os tinha como
aliados do seu governo e isso comprometia seriamente seu projeto de
reeleição. Então resolveu criar seus
próprios cabos eleitorais dentro da classe médica. Queira ou não, a prática da
medicina é uma máquina de fazer votos. E os médicos desse programa farão ações
básicas de saúde, isto é, justamente estarão junto do povão no seu cotidiano e
prática profissional. Não há maior e melhor cabo eleitoral junto ao eleitorado
mais sensível a enganação. Está aí a prova do caráter eminentemente eleitoreiro
da medida.
Não se trata
apenas de ser contra o programa. Ele tem suas incorreções, mas não é de todo
ruim. Porém, o pior é ele vir isolado, sem as demais medidas conjuntas
necessárias à melhoria de fato da assistência. Pois não precisamos somente de
mais médicos, mas de mais dignidade na prática desse exercício profissional e,
consequentemente, para a população. Só mais médicos não é solução. E enganação.
A prática
médica está envolta em muitas controvérsias e críticas, mas o problema é mais
por ingerência dos gestores públicos em suas funções do que do próprio médico
no exercício da profissão. É muito complexo esse tema. Discuti-lo aqui
superficialmente pode criar margem a mal-entendidos. Mas muitas vezes há também
fatores abstratos e subjetivos que prejudicam deveras o sucesso da prática
médica, como a ignorância e a pobreza do paciente. Em nossa região tem-se que
combater 03 males no dia-a-dia da profissão médica, na maioria dos pacientes
atendidos: a doença, a pobreza e a ignorância do paciente. Faz-se um desafio
enorme o sucesso do ato médico nessa realidade. Não é somente um único ”leão
que o médico tem que matar” todo dia. Quase todo paciente é um “leão”.
E o programa
atraiu milhares de médicos. E na sua imensa maioria cubanos e brasileiros
formados em universidades latino-americanas. Sobre nossos irmãos brasileiros,
já entendemos pelo artigo anterior dos motivos de aderirem rapidamente ao
programa. É a oportunidade de trabalharem legalmente no país sem terem que
submeter-se ao Revalida. Já sobre os cubanos cabe explanar aqui que lá eles
ganham apenas 30 dólares de salário/mês. É muito atrativo para eles os mais de
5.000,00 dólares que arrebanharão aqui mensalmente. Ganharão por mês aqui mais
do que em 10 anos de trabalho lá.
E para esses
médicos estrangeiros há vários fatores limitadores significativos do sucesso do
ato profissional deles. As diferenças regionais das endemias, a língua, a
medicação desconhecida, falta de preparo ou preparo não comprovado da formação
no exterior, grades curriculares diferentes da nacional, entre outros. E isso
não é pouca coisa não. Vou contar um exemplo pessoal: numa das minhas férias no
Maranhão quando estudante de medicina no Rio, vi numa única manhã 06 casos de
leishmaniose tegumentar na minha cidade. Voltando à faculdade, ao iniciar
naquele semestre a disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias, meu
Professor titular da cadeira, um dos mais renomados médicos do Rio de Janeiro,
já idoso, disse na aula sobre essa doença que havia visto dela apenas 01 caso
clínico em toda a sua vida profissional até aquela data. As realidades de saúde
são diferentes regionalmente no Brasil. De país para país, são mais díspares
ainda.
Mas aumentar a
quantidade de médicos não é a solução do problema da assistência à saúde
pública no Brasil. Falta muito mais... Faltam investimentos estruturais
significativos na saúde do país. O governo federal para apenas R$ 10,00 por uma
consulta médica do SUS. Um borracheiro cobra R$ 20,00 pelo conserto mais
simples de um pneu. E só a presença física do médico não resolve o problema.
Aliás, hoje o que amargura muito o médico é ele saber fazer o que o paciente
precisa, querer fazer, mas não poder fazer porque as condições de trabalho não
lhe permitem. É angustiante. Faltam macas, medicamentos, equipamentos básicos
como aparelhos de pressão, estetoscópios, otoscópios, glicosímetros,
nebulizadores, lanternas, abaixadores de língua, luvas e termômetros. Falta até
pia, sabão, toalha e água muitas vezes... É essa a realidade. Em nossa região é
assim. Como atender bem um diabético se nas emergências e ambulatórios faltam
aparelhinhos que meçam a glicose (glicosímetro)? E um hipertenso sem poder
medir-lhe a pressão? Uma dor de ouvido sem poder ver o ouvido ao otoscópio? Eu
já dei plantão sem aparelho de pressão na unidade. E sem medicamentos básicos
como dipirona e soro. Já realizei cirurgias sem a existência de oxigênio no centro
cirúrgico. Triste. Dá vontade de chorar, abandonar o plantão e até a profissão.
E o que mais
frustra é esse saber fazer, querer fazer e não poder fazer porque não permitem.
Sou rodeado disso e é essa a realidade. Há recursos, sim, ainda não totalmente
suficientes, mas há; mas falta capacidade de gestão, competência, boa vontade,
amor à vida, compromisso com o ser humano e sobra má fé, desonestidade,
corrupção e insensibilidade. São tantos gestores públicos com “Síndrome de Deus”
pela sensação de onisciência e onipotência, mas sem nenhuma potência resolutiva
e sem onipresença, mas total ausência de eficiência. Sobra prepotência.
E esperemos as
consequências negativas do programa. Por exemplo: prefeitos que nos rincões do
país já não contratam mesmo mais médicos e investem é em ambulâncias para a “reboqueterapia”,
ou em enfermeiros para satisfazer a demanda de clínica médica e pré-natal, pois
tudo isso é mais barato, agora mesmo é que não contratarão mais médicos e não
investirão em recursos humanos, equipamentos e saúde complementar. Além da
demissão de médicos já atuantes nesses municípios para economizarem com os do
programa, como já aconteceu no município maranhense de Santa Rita. Assim o
programa não atinge o seu objetivo social e muda de nome: em vez de “Mais
Médicos” fica “Troca Médicos”.
O que resolveria
mesmo nosso problema de saúde pública seriam ações governamentais de caráter
muito mais profundos, abrangentes, maiores e complexos. Mais investimentos, mais
médicos, mais enfermeiros, mais assistentes sociais, mais terapeutas
ocupacionais, mais fisioterapeutas, mais fonoaudiólogos, mais psicólogos, mais
equipamentos, mais controle social efetivo, mais “provão” para avaliar o
preparo dos médicos formados no país e não somente os de fora, mais cuidado na
aprovação da criação de novos cursos médicos, mais ênfase e estímulo à formação
do médico generalista e desestímulo a especialização exagerada, mais alteração
na grade curricular dos cursos já existentes, mais fiscalização da qualidade
dos cursos médicos, mais e melhor distribuição geográfica dos médicos com políticas
de atrativos para tal, mais condições adequadas de trabalho, mais humanização
da prática médica, mais e melhores salários para o serviço público com a
criação da carreira de médico de estado como há a de juiz e promotor, mais
fiscalização dos programas de atenção básica de saúde, mais, mais e mais... Mas
só “Mais Médicos”, não.
Allan
Roberto Costa Silva, médico, ex-Vereador-Presidente da Câmara
Municipal de Pedreiras, membro da Academia Pedreirense de Letras e da
Associação de Poetas e Escritores de Pedreiras-APOESP. E-mails: allanrcs@bol.com.br e
arcs.rob@hotmail.com
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