Desabafo de um doidão

Tem me incomodado muito o assédio das pessoas, especialmente com hipocrisia, tratando-me como herói após o episódio da cirurgia com sucesso em um paciente jornalista que sofreu um atentado a bala durante o carnaval. Se não tivesse sido operado naquele momento, o paciente não chegaria vivo a Peritoró. Não me envaidece nada disso. Tantos outros casos mais complexos e sem destaque de mídia, de anônimos, tiveram o mesmo resultado de êxito e não foram destacados. E realizados por mim e por todos os demais médicos, pois todos nós somos heróis anônimos todos os dias nas condições em que trabalhamos. Só fiz a minha obrigação. Não mereço honras por isso. Para isso já sou remunerado pela prefeitura.
Sei também que muito maior que essa saraivada de elogios pelo sucesso, seria a brutal condenação a mim se o procedimento cirúrgico não tivesse atingido êxito, mesmo que por questões independentes de minha habilidade profissional, e o desfecho tivesse sido outro. Aí viriam o conseqüente ostracismo e as ilações irresponsáveis várias sobre minha conduta. E os comentários mais comuns seriam: “Por que não encaminhou pra Teresina? Só pra matar o cara?! Devia está drogado e por isso o cara morreu”. Estou acostumado a essa realidade hipócrita e injusta de que “se o paciente morrer em Teresina foi Deus que quis; já se morrer aqui, foi o médico que matou”... Triste!
Sei que muitos dos que hoje aplaudem são os mesmos que precisaram e precisam de mim sempre, mas que dias antes condenavam o governo municipal por manter um médico com histórico pessoal de uso de drogas trabalhando no hospital. As mesmas mãos que aplaudem hoje são as mesmas que apontavam dedos condenatórios dias antes e que, como posso recair, poderão me condenar de novo tantas outras vezes... Muitos deles crentes de bíblias embaixo do braço e outros tantos católicos carolas de hóstias sobre a língua.
O que não entendem é isso: o que um usuário de drogas mais precisa é de oportunidade de sentir-se útil e amado, não de dedos o apontando como escroque e mãos o rotulando de marginal e delinqüente e o empurrando ainda mais para o fundo do poço que ele já vive.
Muitas vezes, o que faz o usuário de drogas necessitar anestesiar sua dor intima na substância de escolha é não suportar a dor de conviver com tanta hipocrisia das pessoas; apesar do tratamento para a drogadição prever a aceitação disso tudo como passo imprescindível para a recuperação.
E saibam mais: Deus honra! E a glória é d’Ele; não é minha não. E é tanto Ele e não eu, que a honra veio em pleno carnaval, a ocasião mais propícia para eu estar na farra, quando todos acostumados a me condenar esperavam me ver na esbórnia.
Estou acostumado a essa situação em Pedreiras. E isso é próprio da condição humana. Já atendi aqui por 17 anos uma família inteira, de mamando a caducando, a qualquer hora do dia e da noite e madrugada, sem ter dia útil ou feriado, fazendo minha obrigação profissional e muito além, sem nunca cobrar um tostão. E quando uma vez o resultado do tratamento em um membro dessa família não estava saindo como queriam, inventaram e espalharam pela cidade que eu propositadamente estava matando o ente querido deles por questões meramente políticas. Olha a que ponto vai a irresponsabilidade, a inconseqüência, a insanidade e a ingratidão das pessoas.
Quantas vezes não chegam para mim na rua e em consultório me parabenizando pelo médico de Teresina ter feito elogios a mim ou confirmado minha terapêutica instituída. E falam cheios de garbo, como se estivessem me fazendo um grande elogio. Não sabem que eu lastimo isso. Os médicos de Teresina são médicos iguais a mim e aos demais daqui e do mundo, e eu não estou exposto a avaliação e teste deles não. Pensam que estão me elogiando e estão me ferindo, porque provam com isso que não confiavam em mim e precisaram do atestado de um outro qualquer para acreditar que eu sirvo. E esse outro lá para me confirmar como bom foi pago; e comigo aqui foi tudo de graça.
Sei o que sou e do que sou capaz. Não preciso me auto-afirmar. Sou muito consciente de minhas limitações e de meus potenciais. Elogios não pagam minhas contas. E amigos sinceros são conhecidos é na hora da necessidade. E são raros.

Como disse acima, já estou acostumado a isso. Aliás, escolhi para conviver e lidar diuturnamente com duas atividades que mexem com o pior das pessoas - a política e a medicina. Na medicina lido com o ser humano em seu pior momento – a hora da dor, da fraqueza, da falência, da finitude. E na política lido com o ser humano no seu pior lado, em sua parte mais cruel e sombria de personalidade – a ganância, a vaidade, o egoísmo, a ambigüidade, a desonestidade e a deslealdade; tudo muito comum no mundo da política. Mas mesmo consciente e acostumado a isso, eu tinha que fazer esse desabafo, pois há situações que não podem passar em branco.

Allan Roberto Costa Silva, médico, ex-Vereador-Presidente da Câmara Municipal de Pedreiras, membro da Academia Pedreirense de Letras e da Associação de Poetas e Escritores de Pedreiras-APOESP. E-mails: arcs.rob@hotmail.com e allanrcs@bol.com.br

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